quinta-feira, 26 de março de 2020

Aráceas, Burle Marx, Surrealismo, a Morte e a Vida - não necessariamente nesta ordem

Cena 1: Dezembro de 2013, cinco horas da manhã em um rooftop de Goiânia. O núcleo criativo do Ateliê comemorava o lançamento de nossa quinta coleção, num after extendido. O pai da Amanda morrera havia poucas semanas. Eu e a Amanda muitas vezes conversávamos mais por olhares do que por palavras e eu adoro isso. Num dado momento estávamos só nós duas sentadas olhando uma grande folha de arácea debaixo de uma chuva suave. A folha se mexeu. A folha se mexeu, mas não como as folhas normalmente se mexem, quando crescem ou quando venta. Sua borda ondulou-se suave e lentamente como eu nunca vira ou vi novamente. Eu e Amanda nos entreolhamos e, sem dizer nada, claro, soube que havíamos sentido a mesma coisa: a vida está muitas vezes onde não percebemos. Para mim aquela foi a "conversa" que tivemos sobre a morte do pai dela.

Cena 2: Setembro de 2014. Estava no meu apartamento, concentrada na criação de uma coleção cápsula para a marca paulistana Alcaçuz. Recebo um telefonema dizendo da morte inesperada de uma pessoa querida em Paris. Decido ir para Paris no primeiro vôo possível, mas tinha que terminar aquela coleção antes de ir. Dividida entre a obrigação e o sentimento, digo para mim mesma: se você tem que fazer essa coleção e você não consegue parar de pensar na morte do Steph, "fale" sobre essa morte na coleção.

Mas o briefing da Alcaçuz envolvia o paisagista Roberto Burle Marx...

Olhando para algumas fotos dele, me deparei com esta:

Burle Marx no Bronx: uma homenagem à exuberância | Brazil Journal

Ah, a arácea...

Imediatamente entendi. Tive o tal insight: uma folha de arácea, como a que eu havia visto com a Amanda naquele rooftop, abraçando Burle, nessa imagem que desde então eu amo. Tinha que ser isso a coleção. Mas não bastava a folha, não. Ela tinha que ter aquele ondulado, aquele ondulado que me confortou a mim e a ela, dizendo sem palavras que a vida estava ali. A do pai dela e agora a do Steph.

A coleção estava pronta na minha cabeça, podia viajar em paz.

O curioso é que as meninas da Alcaçuz não aprovaram a peça, pois a acharam muito parecida com um coração. Sem problemas, desenhei outras para elas, tudo certo, e guardei as aráceas para o Ateliê.

Hoje é uma das linhas que as pessoas mais gostam, porque ela é um coração para quem assim enxerga, ou uma arácea para quem assim quer. Ou ambos para quem teve a sorte, como eu e a Amanda, de saber que eles podem se confundir.

A linha arácea foi lançada numa coleção que chamamos "Ceci n'est pas", que significa "Isso não é", em francês. Essa frase ficou famosa por este quadro do pintor surrealista Magritte:

The treachery of images (This is not a pipe), 1928 - 1929 - Rene ...

Nele está escrito "Isto não é um cachimbo", uma provocação típica dos surrealistas. Dei o nome de "Ceci n'est pas" pra essa coleção porque foi minha resposta para as meninas da Alcaçuz: "mas isso não é um coração!". 

Só que  no fundo, eu entendi depois, era sim.  



O "ondulado"


Colar Arácea
Anel Arácea

O que eu adoro nessas peças, sobretudo no bracelete e no anel, é que eles parecem uma folha que brotou da mão ou do braço de quem usa. A estrutura é mínima, existe apenas para dar suporte à folha. Toda vez que ponho essas peças penso nisso, numa folha que brota do meu corpo.

Beijos, 
Eleonora

PS . Saudades de você e de nossas não-conversas, Mandi!





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